Bicycle e o alimento da alma

Thais ID
5 min readJun 15, 2021

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Para ler ouvindo Bicycle

Durante o FESTA de 2021, Namjoon nos presenteou com Bicycle, uma poesia sobre o ato de olhar e enxergar pequenos milagres nas coisas simples do nosso dia a dia. Quantas vezes você tirou um tempo para passear pela sua cidade e observar os detalhes das construções, ver pessoas ou apenas sentir o vento no rosto?

Em sua letra, Namjoon nos convida a flanar.

“Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.”

Flanar é um verbo francês, surgido no século XIX, ao mesmo tempo que grandes mudanças ocorriam nas cidades. Tudo ficou mais rápido, alto consumo e um ritmo de trabalho muito mais cansativo, semelhante à rotina em que vivemos hoje. O mundo ficou veloz e o ser humano precisa parar e se descobrir parte da cidade em que vive.

Para Walter Benjamin, essa é uma figura relacionada diretamente aos artistas, que conseguem enxergar o belo até mesmo em paisagens urbanas monótonas. Já Baudelaire define o flâneur como o oposto do burguês: ele está interessado em contemplar e não em fazer dinheiro a todo custo.

“A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a linguagem não pode definir senão toscamente”

O alimento da alma a que me referi no título, faz referência ao que foi a definição dada por Honoré de Balzac para ele o ato de andar pelas cidades: Gastronomia do olho.

De acordo com o dicionário Michaelis, existem três definições para a palavra gastronomia:
Conhecimentos e práticas relacionados à culinária;
Arte de cozinhar e preparar os alimentos de modo a realçar suas qualidades;
Arte de escolher e apreciar os melhores pratos. Fonte

Ou seja a gastronomia seleciona o que há de melhor, realça a qualidade do que tem, combina elementos e o apresenta de uma forma que agrade os olhos e o satisfaça. Assim, falar sobre a gastronomia do olho é o mesmo que dizer que o flâneur entende a cultura onde está inserido, pega todos os ingredientes da cidade e transforma em alimento para a sua alma. Ao mesmo tempo que é um Chef, é um detetive da cidade e um observador apaixonado, assim como descreve Namjoon em sua música Bicycle.

Além disso, o flâneur é uma figura quase invisível na cidade. No meio do barulho da cidade, um caminhante ou alguém andando de bicicleta passa despercebido. É um artista silencioso que pode estar disfarçado de um cidadão comum, um trabalhador ou apenas alguém descansando. São poucos os que percebem que o flâneur pratica sua atividade, pois nos tempos de hoje, gastar tempo para apreciar o comum é impensável.

Ou você está esperando algo acontecer, ou está indo para algum lugar fazer algo, vivendo o futuro e não aquele momento. Por isso, Walter Benjamin ainda diz que essa figura é um sinal “da alienação da cidade” e que o fim dessa atividade mostra o quanto o capitalismo tomou conta de nossas vidas.

Ao nos convidar a fazer isso, Namjoon propõe ir contra a corrente, principalmente em tempos de pandemia que nos obriga a ficar em casa quase o tempo todo. Além disso, Bicycle exige de nós, ouvintes, abrir a mente para os nossos sentidos e é por isso que ele faz uma citação ao livro “O pequeno príncipe”: “O que é realmente precioso, é invisível”.

No livro, o personagem diz que “O essencial é invisível aos olhos”. Isso significa que, ao contrário do que a nossa sociedade prega, já temos o que precisamos e não precisamos ter ou comprar. As boas coisas da vida são de graça, como a liberdade, amor, caminhar pela cidade, aproveitar o momento com pessoas importantes ou andar de bicicleta.

Se você sabe pedalar, perceba que, muitas vezes você repete os gestos que são descritos na música, mas não para perceber como aquele momento pode ser único, prazeroso e edificante. Afinal, Namjoon a compôs enquanto estava andando de bicicleta. E mesmo que você pense: “mas eu não sou poeta e muito menos sei escrever como o RM”, é possível fazer poesia da forma mais crua, simples e bela.

Paterson, William Carlos Williams e Bicyle

Na mesma vibe que Bicycle, há alguns anos assisti no cinema o filme Paterson. A premissa é simples, porém é de uma profundidade que há muito tempo não via em nenhuma produção, além do fato de me identificar muito com o personagem.

Paterson é um motorista de ônibus da cidade de Paterson. Vemos aí a primeira característica de um flâneur, ele se mistura à cidade e se torna parte dela. Assim como em Bicycle, ele é um homem que gosta de apreciar o cotidiano, mesmo em meio a tanta pressão do dia a dia e no trabalho.

Ele escreve sobre caixas de fósforo, sobre as árvores e tudo que o encanta, sem a intenção de publicar. Apenas como um alimento para a sua alma que clama para ser livre do sistema. Segundo a matéria do jornal Estadão, esse filme pode ser descrito como: “A poética do simples é um bonito antídoto aos excessos alienantes do mundo contemporâneo”.

Neste mesmo filme, temos a referência aos haikais, que eu já usei para explicar como o jogo de palavras nas músicas do BTS criam sentidos novos e também a um autor, William Carlos Williams.

Poeta norte americano, ele é conhecido por conseguir extrair poesia dos mais diversos temas comuns, como ameixas ou mariposas. José Paulo Paes, tradutor de seus poemas, define suas poesias como “parece estar observando o mundo pela primeira vez e inventando a linguagem poética”.

Da mesma forma que Namjoon escreve sobre seu sentimento ao fazer algo que, muitas vezes, é automático, como andar de bicicleta, o filme e o poeta trazem à tona a necessidade de enxergarmos o que realmente precisamos e que não podem ser vistos com os olhos, mas com o coração.

Créditos: @wingsbrazilBTS no Twitter

Referências:

-Baudelaire, Charles. “O pintor do mundo moderno”, originalmente publicado em Le Figaro, in 1863
-http://dicasdeumflaneur.blogspot.com/2011/12/mas-quem-e-o-flaneur.html
-https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,critica-paterson-mostra-a-poetica-do-simples-como-antidoto-aos-excessos-alienantes,70001745025
-https://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/download/124626/121150/235691
-https://personacinema.com.br/um-filme-em-formato-de-poema-paterson-de-jim-jarmusch-3a142200ae6a
-http://www.culturapara.art.br/opoema/williamcarloswilliams/williamcarloswilliams.htm

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Thais ID

33 anos, vivendo intensamente todos os dias, trabalhando com o que amo, caminhando e cantando e seguindo a canção